Os cogumelos sempre ganharam lugar de destaque na culinária vegetariana, são deliciosos, com textura macia, suculentos e com sabor inigualável. O Reino Fungi ainda é pouco explorado na gastronomia brasileira e, por isso, convidamos o biólogo Jeferson Müller, especialista em cogumelos, para nos contar mais sobre este universo em uma entrevista inédita e muito especial.
Jeferson, como começou a sua relação com os cogumelos?
Minha memória mais antiga vem de uns 6 anos de idade, mais ou menos... vi um cogumelo sobre esterco no campo onde minha avó criava gado na serra gaúcha. Quando perguntei o que era aquilo, ela disse que eu não deveria tocar pois era um chapéu-de-cobra, algo venenoso. Disse também que apareciam onde as bruxas andavam. Foi o suficiente pra despertar uma curiosidade gigantesca.
Além de ser um “naturalista” de nascença, sempre gostei de fotografia, especialmente macro, estilo no qual os cogumelos são perfeitos de se trabalhar em função de seus diversos e belos formatos e cores. No primeiro semestre da faculdade de biologia, ao ver minhas fotos, meu professor e depois orientador, Rage Maluf, me convidou pra participar de um projeto de inventário de espécies para posterior criação de um guia de fungos da serra gaúcha. Foi quando comecei a pesquisar sobre identificação e uso de fungos silvestres e caçar cogumelos. Daí nasceu o embrião do Primavera Fungi e de todo trabalho que hoje desenvolvemos.
Qual a sua percepção sobre o consumo de cogumelos comestíveis no Brasil?
Vem aumentando e se popularizando no país, embora ainda seja bastante subutilizado, se avaliado o potencial econômico e culinário destes recursos. Até poucos anos era raro encontrar cogumelos no mercado que não fossem conservas ou desidratados. Também não é um alimento muito presente na maioria das culturas do nosso país. Acredito que a disponibilidade destes produtos frescos no mercado estimula muito o consumo e hoje em dia é cada vez mais comum ver pessoas investindo no cultivo comercial, inclusive de pequena escala, na agricultura familiar.
Também há cada vez mais cursos e debates sobre os cogumelos silvestres nas redes sociais e um crescente interesse pela “comida selvagem” na gastronomia. Acredito que o consumo e aproveitamento de recursos da funga tende a crescer muito e vai além da alimentação. Existe um potencial de lazer e terapia na busca de cogumelos: a descoberta, a pesquisa, a curiosidade, e no fim, coletar e preparar uma refeição ou voltar para casa com boas fotos e lembranças. Muitas pessoas buscam esta experiência. Mas consumir cogumelos silvestres é muito mais complexo que comprar cogumelos cultivados pois exige uma identificação segura e precisa. O risco de se confundir e se intoxicar ao comer um cogumelo errado é grande, principalmente para iniciantes. Por isso a recomendação é que nunca se consuma um cogumelo silvestre sem a certeza da identificação e comestibilidade. Algumas espécies silvestres têm chegado ao mercado através do extrativismo e desenvolvimento de produtos “fungi selvagem”, mas ainda é algo pouco comum nos mercados e restaurantes.
Tendo em vista que o costume atual é buscar cogumelos em redes de varejo, frutarias e feiras, qual a sua visão sobre a importância de identificar e coletar cogumelos selvagens (comestíveis)?
Eu comparo esta importância com a de conhecer as PANC, resgatar sementes crioulas, buscar alimentos agroecológicos, apoiar a agricultura familiar… o conhecimento sobre fungos comestíveis colabora muito com a soberania alimentar.
Quando aprendemos sobre a funga percebemos que ela é tão produtiva e importante quanto a fauna e flora, nos oferecendo muitos serviços e produtos, enquanto mantém o planeta funcionando. Um exemplo é o potencial de emprego e cultivo de diversas espécies de cogumelos em agroflorestas, onde ao mesmo tempo os fungos atuam na degradação da matéria orgânica e enriquecimento do solo, e produzem alimentos. Mas poucos agrofloresteiros conhecem os fungos que vivem em seus cultivos.
Aumentar o conhecimento popular sobre fungos não quer dizer que as pessoas precisam ir pras florestas buscar cogumelos, mas sim que é importante que estes alimentos selvagens se tornem mais populares. Com isso, os mesmos extrativistas que coletam pinhão ou PANC vão obter sustento e renda com estes recursos, abastecer as pessoas interessadas no consumo e ao mesmo tempo desenvolver interesse na preservação da funga. É preciso desmistificar os fungos pois não se preserva aquilo que não se conhece.
Quais dicas você daria para as pessoas interessadas no consumo de cogumelo selvagem?
Se o objetivo for aprender a coletar para consumo, o primeiro passo é muita pesquisa e estudo, buscar guias de identificação, participar de grupos de discussão, fazer cursos com pessoas que tenham conhecimento sobre o assunto e tentar se familiarizar com as espécies de fungos silvestres comestíveis mais comuns. Depois buscar os cogumelos e tentar identificar, mas só consumir se tiver segurança plena de qual espécie se trata. No começo é muito difícil, mas depois que se pega a prática fica mais fácil reconhecer algumas espécies comuns e os “macetes” para identificação.
Pras pessoas que querem consumir estes cogumelos mas não se animam a toda essa pesquisa e dedicação, existem outras fontes (ainda raras), como coletores que comercializam cogumelos silvestres frescos ou desidratados e algumas empresas que fazem produtos como risotos, azeites, sais temperados e até cerveja à base de fungos selvagens. Na serra gaúcha também tem alguns restaurantes que servem cogumelos silvestres.
Os cogumelos são muitas vezes vistos como organismos tóxicos e inseguros, também conhecidos pelos seus potenciais alucinógenos. Quais são os riscos de não saber identificar corretamente uma espécie apta ao consumo humano?
Esta visão sobre os cogumelos tem inclusive nome: micofobia. Muitas culturas têm este medo do desconhecido e rotulam cogumelos como venenos ou drogas. Na verdade são poucos os fungos que apresentam perigo mais sério e risco à saúde. Não existem espécies conhecidas que possam causar envenenamento pelo toque, por exemplo. A maioria das espécies tóxicas, quando consumida, pode causar mal estar, dores de estômago, calafrios, vômitos ou diarreia, mas raramente a morte. Existem espécies como Amanita phalloides, conhecida como “anjo da morte”, que é muito rara no Brasil e cujo consumo pode ser mortal. Também existem espécies que podem causar danos irreversíveis aos rins e fígado. Então o erro na identificação de um cogumelo pode ocasionar o consumo de alguma espécie tóxica ou venenosa, podendo causar de leves intoxicações até a morte, em casos extremos.
Por isso repetimos sempre a recomendação de nunca comer um cogumelo sem a certeza da identificação e comestibilidade. Mas é importante observar que este estigma de “alimento perigoso” está relacionado à nossa falta de conhecimento. Existem plantas e animais tóxicos e venenosos, assim como outros comestíveis. Com os fungos é igual.
Quais variedades selvagens você acha que poderiam ser melhor exploradas na gastronomia brasileira?
Como nosso país é muito grande e diverso, vejo potencial de uso de espécies diferentes conforme cada biorregião. No sul do país existe uma grande diversidade e volume de cogumelos comestíveis associados à silvicultura de árvores como pinus e eucalipto. Entre estas espécies estão os cogumelos mais conhecidos e com maior potencial econômico, em função do volume de produção, entretanto, são espécies exóticas (de fora do Brasil). Como exemplo, pode-se coletar mais de 50 quilos de Porcini (Boletus edulis) em um bom dia de “caça aos cogumelos”.
Quando falamos de cogumelos da amazônia ou da mata atlântica, tratamos de espécies nativas cujo conhecimento e consumo são muito mais interessantes do ponto de vista do uso e preservação da biodiversidade. Estas espécies produzem em quantidades menores, são geralmente mais difíceis de encontrar e identificar e apresentam uma diversidade enorme, ainda pouco conhecida e explorada.
Algumas delas, como Auricularia, Pleurotus e Oudemansiella podem ser cultivadas e comercializadas, facilitando muito a capacidade de abastecer mercados e restaurantes. Uma grande vantagem de se trabalhar com cultivo de espécies nativas é a preservação daqueles recursos genéticos.
Poderia nos falar um pouco sobre o sabor umami que pode ser proporcionado por algumas espécies do reino fungi?
O umani é o quinto sabor do paladar humano, diferente do doce, do salgado, do azedo e do amargo. Significa algo como “sabor delicioso” em japonês e provoca sensações muito intensas no paladar. É o que dá aqueles sabores muito atrativos para queijos, carnes defumadas, tomates secos… e está bastante presente na maioria dos cogumelos. Na indústria alimentícia é reproduzido quimicamente e vendido como tempero na forma de glutamato monossódico, mas neste formato é prejudicial à saúde, ao contrário de suas formas naturais que são saudáveis.
Algumas espécies de cogumelos, como Porcini (Boletus edulis) e Suillus (Suillus spp.), por exemplo, quando desidratados têm sabor umami muito potencializado. Esse sabor pode ser incorporado a pratos usando estes cogumelos secos em pedaços ou em pó. É possível usar cogumelos para saborizar azeite, produzir temperos mistos com sal e especiarias, e muito mais. Até kombucha com orelha de pau é possível fazer. Mas claro que, mesmo frescos, os cogumelos têm umami e cada espécie tem diferentes intensidades que combinam com seus outros sabores.
Os cogumelos são verdadeiras iguarias do cardápio vegetariano, você saberia dizer quais os benefícios do consumo de cogumelo do ponto de vista da saúde?
Os cogumelos são muito referidos como ótimos substitutos da carne, principalmente para obtenção de proteínas. Na verdade, embora os fungos sejam de fato mais parecidos com os animais do que com as plantas, a quantidade de proteínas em cogumelos só é equivalente à carne quando os cogumelos são usados secos, ou seja, 100 gramas de carne fresca têm proteína equivalente a 100 gramas de cogumelos secos. Mas os cogumelos possuem muitos aminoácidos essenciais, fibras e vitamina D (principalmente se secos ao sol), sendo muito saudáveis e saborosos.
Em função da textura da maioria das espécies, se mostram como ingrediente diferenciado e que enriquece muito uma dieta, especialmente a vegetariana. É um reino a mais no prato, uma diversidade enorme de alimentos.
Poderia contar um pouco sobre o seu livro Primavera Fungi e como adquirí-lo?
O Primavera Fungi foi o resultado de uns 12 anos de pesquisa e o objetivo era criar um guia de fungos mais popular e simples, para que as pessoas pudessem aprender mais sobre a funga. Ele traz informações sobre o reino dos fungos, fotos detalhadas pra ajudar a identificar as espécies, dicas de coleta, receitas, informações nutricionais e várias curiosidades sobre fungos. O livro foi publicado por meio de um financiamento coletivo em 2018 e o engajamento de muitos colaboradores da campanha acabou se transformando em uma grande rede de aprendizado. Com o movimento em torno do livro passamos a realizar vivências em que levamos pessoas para coletar cogumelos, preparamos refeições, desenvolvemos pesquisas de identificação e uso dos fungos e várias ações de divulgação científica.
No momento não é possível adquirir o livro porque a primeira edição esgotou, mas já estamos finalizando a segunda, agora revisada e ampliada, com mais espécies de cogumelos e mais receitas. Quem tiver interesse nesta próxima edição e em apoiar os próximos passos do projeto pode acompanhar nossas redes sociais, que em breve lançaremos uma nova campanha de financiamento coletivo, um e-book de cogumelos comestíveis com distribuição gratuita e um canal de video-aulas de livre acesso. Quem quiser aviso sobre a campanha ou disponibilidade do livro pode escrever para contato@primaverafungi.com (com o assunto “primaverafungi2”). Também é possível ficar na lista de espera através da nossa loja, no site primaverafungi.com, acessando o item de venda do livro.
Para encerrar, gostaria de deixar alguma mensagem?
Deixo meu agradecimento à Rita pela oportunidade de falar sobre nosso trabalho aos que se interessam pela funga, meu convite a conhecerem mais sobre os fungos e, quem sabe um dia, caçar cogumelos juntos pelas florestas. Também alerto para o grande risco de se apaixonarem perdidamente pelos cogumelos. Boa caçada, um abraço e muito obrigado.
Jeferson Müller Timm, Biólogo, permacultor e mestre em engenharia civil, atua em projetos de gestão ambiental e sustentabilidade. Estuda fungos silvestres há mais de 15 anos, e é um dos precursores do movimento de popularização do conhecimento sobre coleta e uso dos cogumelos silvestres no sul do Brasil.
Saiba mais aqui.
Que entrevista bacana! Já assisti a um programa da CNN “Viagem e Gastronomia“ onde uma pousada na serra gaúcha proporciona aos hóspedes coleta de cogumelos porcini.